sábado, 5 de novembro de 2011

Significado e representatividade

Nos anos 60 um jovem negro do Alabama despontou como boxeador de raro talento. Ao mesmo tempo em que exibia movimentos ágeis e leves, impunha força e precisão em golpes quase sempre certeiros. Apresentava um estilo novo, desconcertante, quase um bailado, bonito de se ver, principalmente quando derrotava adversários mais fortes. Conquistou logo os títulos de Campeão Olímpico e Mundial. Mas, apesar da fama, das medalhas e da glória que trazia para seu país, não podia entrar em lanchonetes e pedir um simples sanduíche. Na época, não permitiam negros em muitos bares e restaurantes nos Estados Unidos.

Além das habilidades esportivas, o jovem era competente no jogo das palavras e em atitudes de provocação. Seus desafetos prediletos eram a imprensa, com quem fazia jogos de cenas, o Governo e o Exército Americano. Acredito que foi ele quem inventou as provocações entre os boxeadores na hora da pesagem.

Esperto, não tardou a perceber que representava a indignação de boa parte dos americanos contra o status quo. Era uma época de grandes mudanças, diversos grupos ativistas levantavam causas e bandeiras por todos os lados. Com os ecos da Segunda Guerra ainda reverberando nos ouvidos e o espanto com novas invenções e conquistas, como o homem chegando à Lua, a sociedade já não tolerava mais atitudes e comportamentos como a segregação e o preconceito racial.

Compreendendo que o seu jeito de ser e se apresentar ao público representava boa parte desse inconformismo, o jovem boxeador soube usar essa imagem em benefício da sua carreira e, principalmente, a favor da causa maior: o direito das minorias. Aproveitando o poder que a mídia lhe proporcionava começou a esbravejar em alto e bom som: “Eu sou o maior! Eu sou o maior!” Quanto mais desafiava a ordem pública, mais força lhe era oferecida pelos admiradores. Para provocar mais ainda mudou seu nome de Cassius Clay para Muhammad Ali.

Recusou-se a servir no Vietnã e por causa disso foi perseguido, perdendo o título de campeão mundial. Voltou cinco anos depois num dos combates mais espetaculares de todos os tempos. Com a astúcia que lhe era natural derrubou Foreman, um lutador mais forte e mais bem preparado. E onde? Na emblemática África.

Outro jovem, da mesma época, Elvis Presley, entendeu que os inconformistas haviam-no adotado com símbolo na luta contra o falso moralismo. Sua explosiva mistura de música negra, swing e rebolados sensuais chegaram à medida e hora certas para incomodar o conservadorismo tacanho que teimava em querer ditar as regras do viver.

Perceber a representatividade é um dom, uma arte a ser usada com parcimônia e, principalmente, com inteligência. O herói fica prisioneiro daquilo que representa, por isso tem que se manter fiel aos anseios do seu público e a si mesmo. Assim, Picasso representa a derrubada da estética nas artes plásticas, Coco Chanel a revolução da moda feminina e James Dean o inconformismo juvenil pós-guerra.

Churchill e Gandhi souberam usar do seu carisma e do poder das palavras, da presença e dos exemplos pessoais. Ambos representavam o momento das suas nações e precisavam mostrar coragem, determinação, paciência e garra. Políticos, esportistas, músicos, artistas, escritores e pensadores, quando percebem o valor dos seus significados e administram suas carreiras com sabedoria, se perpetuam. Ayrton Senna e Pelé entre nós, e Lady Di entre os ingleses, são bons exemplos.

Quando uma expressão humana emerge de forma notável e espontânea nas artes, esporte, música, literatura ou na política e, se não foi fabricada pelas técnicas do marketing e da comunicação, é porque o inconsciente coletivo estava preparado e ansioso por recebê-la e tinha um desejo latente de identificação. Assim nasceram grandes heróis. O escolhido, além de carisma, deve ser forte o bastante para sustentar as exigências da sua nova condição. Os fracos e falsos ficam no meio do caminho. Nada mais frustrante para um povo do que ver o ídolo, ansiosamente esperado, desmoronar em bases mal alicerçadas.

Na política, onde a representatividade deveria ser a mais sagrada das funções, não têm surgido nomes significativos nos últimos tempos, e na ausência deles, nosso povo mira-se nas celebridades do momento. As colunas sociais, esportivas e de variedades estão cheias delas.

Fonte: Eloi Zanetti

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